Jornalistas contra a ditadura militar: memória e contemporaneidades

Por Antonio Victor - Jornalista e Sociólogo, com especialização em Ciências Sociais. 


O jornalismo é conhecido por ser os olhos, a boca e o ouvido da sociedade. Historicamente sempre foi assim! Esse papel social e combativo assumido pela imprensa ao longo de várias décadas no Brasil, figurou como um movimento antagônico aos interesses da elite que comandava o poder no país. Durante os anos sombrios da Ditadura Militar, o jornalismo se manteve impávido, em uma conjuntura de delinquência legalizada, onde a tortura e o cerceamento dos direitos civis, era uma ação deliberada do Estado. 

Máquinas ao chão!

Nas redações, muitas vezes improvisadas em porões, os profissionais da informação viravam madrugadas, escrevendo matérias que expressavam o profundo sentimento de liberdade da sociedade daquela época, ao mesmo tempo, que denunciava a escandalosa e truculenta perseguição por parte dos militares.

Em 1978 a Lei de Segurança Nacional, editada por Ernesto Geisel, em seu Artigo 14 definia as imputações a qualquer cidadão que divulgasse "por meio de comunicação social, notícia falsa, tendenciosa ou fato verdadeiro truncado, ou deturpado, de modo a indispor o povo contra as autoridades constituídas". Esse dispositivo era utilizado para enquadrar os membros da imprensa que adotavam um perfil de embate direto ao regime ditatorial vigente.

O baiano Antonio Carlos Fon, foi uma das centenas de jornalistas cuja atuação fora tipificada pelo Art.14 da LSN. Autor do livro-reportagem "Tortura: a história da repressão política no Brasil", o jornalista escancara o modo de operação e as engrenagens do militarismo. 

O conteúdo da obra aprofunda aspectos da conivência do governo com a corrupção e os excessos da atuação policial, denunciando, inclusive, a participação do empresariado no combate aos "subversores" da ordem política e social, mediante premiação a agentes da repressão.

Enquanto o governo via na imprensa liberal e conservadora uma poderosa aliada no arrefecimento de determinados setores, no sentido de evitar sublevações contra o regime, o jornalismo reacionário não descansava em relatar a situação em que viviam os presos políticos e a evidenciar as práticas de tortura como o "pau de arara" e outras. 

Antonio Fon, foi um importante personagem nesse cenário, pois atuou em vários meios de comunicação conservadores como "jornalista infiltrado" pelo PCB. Sua missão era descobrir como agia a polícia contra os comunistas.  

O caso do jornalista Vladimir Herzog

Nascido em Osijek, antiga Iugoslávia e atual Croácia, em 27 de junho de 1937,  Vlado Herzog se naturalizou brasileiro após a família fugir do antissemitismo nazista. Seus pais já tinham passado pela Itália, vindo posteriormente ao Brasil em um navio panamenho, com passagens compradas por uma organização judaica de ajuda humanitária. Aqui, Vlado cursou filosofia na USP e conheceu sua esposa Clarice Chaves, que à época, cursava Ciências Sociais. Com quem casou em 1964 (ano do Golpe).

Apesar da formação em filosofia, foi no jornalismo que Vladimir encontrou maior contentamento. Iniciando sua carreira como jornalista em 1959 no jornal "O Estado de São Paulo". Apesar de uma breve passagem em Londres, pela BBC (1965-1968), ao retornar ao Brasil o jornalista chegou a assumir a direção de jornalismo da TV Cultura de São Paulo.

Ao perceber que vários colegas e amigos de profissão estavam deixando o país forçadamente para o exílio político, Vladimir foi tomado por um profundo descontentamento com o clima político.

O jornalismo era um forte alvo dos militares, pois a censura era utilizada como uma forma de blindar o governo e escamotear o seu próprio autoritarismo, para assim garantir uma falsa imagem democrática. Principalmente para a comunidade internacional.

O controle à imprensa acontecia das mais diversas formas: através de bilhetes e telefonemas anônimos; por acordo entre os militares acerca do que deveria ser publicado ou não (as matérias eram enviadas à delegacia regional da polícia federal, para exame dos militares a fim de obter licença para publicação).

Para contornar o problema, a imprensa passou a adotar o simbolismo para driblar o veto do censor. Dessa forma, as críticas ao regime, ocorria em linguagem simbólica e subliminar. 

“Tempo negro. Temperatura sufocante. O tempo está irrespirável. O país está varrido por fortes ventos. Máx.: 38°C em Brasília; Mín.: 5°C nas Laranjeiras”. Esse trecho fazia uma clara metáfora à ditadura.

Para cobrir os espaços em branco, por conta dos vetos da ditadura, os jornais publicavam poemas de Camões e até mesmo receitas, ao invés das notícias sobre o cotidiano brasileiro.

Alguns meses antes da sua morte, Vladimir Herzog se filiara ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), como forma de lutar contra o autoritarismo político, que vigorava na época. “É uma questão de momento. A situação política no Brasil é grave. Só há dois movimentos organizados que podem se articular para combater a ditadura – a Igreja e o Partido Comunista. Eu sou judeu. Só tenho uma opção“. - Disse o jornalista à sua esposa.

A sua prisão pelo governo se deu em função da operação Jacarta, que visou eliminar os comunistas infiltrados no Governo de São Paulo, o ano era 1975. Por conseguinte, vários jornalistas foram convocados a prestarem esclarecimentos na sede do DOI-CODI, incluindo Vladimir Herzog.

No dia 25 de outubro de 1975, Vladimir apresentou-se voluntariamente na sede do órgão a fim de prestar as devidas explicações. Entretanto, fora completamente privado de seus direitos, sendo preso imediatamente, interrogado, torturado e morto. Tendo sido amarrado, espancado e, durante o interrogatório, recebeu choques elétricos, uma forma dos militares forçá-lo a entregar outros jornalistas envolvidos com o PCB.

Imagem: Instituto Vladimir Herzog.

Para camuflar a sua morte, os militares forjaram um suposto suicídio. Apesar dessa conjectura, a Comissão da Verdade esclareceu que Vladimir foi morto pelo Estado. Apenas em 2013 o laudo da sua morte fora retificado. Após a correção, ficou oficialmente reconhecida a morte por maus tratos e tortura pelo II Exército, nas dependências do DOI-CODI.

Contemporaneidades

Apesar do hiato temporal que nos separa dos anos da ditadura, o jornalismo no Brasil ainda tem muito presente as marcas dolorosas desse período. 

A máquina de escrever cedeu lugar aos computadores, celulares e tablets. O rádio vem se reinventando e os podcasts se multiplicam aos milhares nas plataformas de áudio streaming; de forma semelhante segue os sites, blogs, páginas de notícias nas redes sociais... e por aí vai!

A revolução tecnológica modificou substancialmente a maneira como o jornalista documenta os fatos e narra cada capítulo vivo da história. Entretanto, as ressalvas impostas pelos setores dominantes à liberdade de expressão é uma preocupação muito presente. 

Em pleno século XXI ainda temos que lidar com vários desafios de ordem política e social, para garantir o pleno exercício profissional. Principalmente diante do fenômeno estrondoso das multiplataformas digitais.

Nesse areópago, o compromisso de produzir informação com qualidade e responsabilidade, de maneira independente e desvinculada dos interesses meramente financeiros, é um imperativo que nos desafia a exercer um jornalismo combativo, capaz de expressar e traduzir os verdadeiros anseios da população. 

O conceito de fakenews, por exemplo, pode exprimir uma preocupação no âmbito jurídico/social, mas também, o seu combate, pode trazer como obsessor, o fantasma da repressão. O PL2630, pode, sim, representar uma demanda da sociedade, porém, tem o potencial de legitimar excessos por parte do Estado e reduzir a pluralidade de pensamento a um viés capaz de manipular a opinião pública. 

O fato voltou ao debate, após Elon Musk se manifestar contrário às decisões do Ministro Alexandre de Moraes. Consideradas "desproporcionais" pelo empresário. 

Durante a ditadura, havia uma preocupação muito semelhante. Contudo, a utilização da LSN, resultou em verdadeira atrocidade contra os direitos civis. Precisamos ter muito cuidado com aquilo que a elite política defende, pois, dificilmente ela defende os interesses coletivos. O resultado de campanhas dessa natureza, todos já conhecemos, só precisamos aprender com a história a fim de não repetir o mesmo erro! Hoje o alvo pode ser os nossos desafetos políticos, amanhã pode ser você!

Nesse dia do Jornalista, deixo-vos essa reflexão. Não esqueçamos do nosso recente passado. Honremos nossa história e a memória daqueles que deram a vida por aquilo que julgavam justo e verdadeiro: a liberdade!

Referências

ANTÔNIO CARLOS FON: UM JORNALISTA INFILTRADO NA REPORTAGEM POLICIAL CONTRA A DITADURA. Revista Alterjor[S. l.], v. 28, n. 2, p. 763–775, 2023. DOI: 10.11606/issn.2176-1507.v28i2p763-775. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/alterjor/article/view/212569.. Acesso em: 7 abr. 2024.

BRASIL. Lei nº 6.620, de 17 de dezembro de 1978. Define os crimes contra a Segurança Nacional, estabelece a sistemática para o seu processo e julgamento e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 dez. 1978. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/l6620.htm> Acesso em: 07 abr. 2024.

COSTA, R. C. T.; LEMOS, L. F. A DISSINTONIA DO ESTADO BRASILEIRO AO PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA: caso Vladimir Herzog. Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas (UNIFAFIBE)[S. l.], v. 8, n. 1, p. 373–402, 2020. DOI: 10.25245/rdspp.v8i1.677. Disponível em: https://portal.unifafibe.com.br:443/revista/index.php/direitos-sociais-politicas-pub/article/view/677. Acesso em: 7 abr. 2024.

FON, Antônio Carlos. Tortura, a história da repressão política no Brasil. São Paulo: Global, 1979.

Vladimir Herzog: conheça a história do jornalista!. Portal Politize. Disponível em: https://www.politize.com.br/vladimir-herzog/ Acesso: 07 abr. 2024.








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