A privatização de Deus pelas igrejas, o caso do Padre Kelmon e a estratégia de Roberto Jefferson.
Padre Kelmon Luís, candidato à presidência pelo PTB, com o vice da chapa, Pastor Gamonal. |
Todos os anos em que ocorrem eleições federais no Brasil, os partidos costumam apresentar no primeiro turno, candidatos dos mais diferentes perfis, no intuito de abocanhar fatias específicas do eleitorado. Nessas eleições de 2022, chamou a atenção no último debate do SBT, ocorrido no sábado (24), a presença de um "padre" da Bahia, que se apresentou como candidato à presidência pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
A imagem do padre, trajado com vestes típicas da tradição ortodoxa, repercutiu não somente no meio político, mas também no universo religioso, despertando a "fúria" de igrejas tradicionais, presentes no país, as quais estão vinculadas historicamente à ortodoxia.
A Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia, por exemplo, expressou por meio de um comunicado oficial que, "o referido candidato, não é membro da igreja, em nenhuma de suas paróquias, comunidades, missões ou obras sociais, bem como não é e nunca foi seminarista ou membro do clero da igreja em nenhum dos três graus (diaconato, presbiterato e episcopado), quer no Brasil, quer em qualquer outro país, e também não é nem nunca foi membro leigo ou clérigo de nenhuma de suas igrejas irmãs: Igreja Copta Ortodoxa de Alexandria, Igreja Apostólica Armênia, Igreja Sirian Ortodoxa Malankara, Igreja Ortodoxa Etíope ou Igreja Ortodoxa Eritréia"- afirma o comunicado assinado por Dom Tito Hanna, Arcebispo e Núncio Apostólico da igreja no Brasil.
De posse dessa informação, a grande mídia brasileira, não poupou esforços para atacar o candidato que se orienta como "conservador" e contra o aborto, acusando-o de ser um "falso" padre. Como resposta, Padre Kelmon Luís - como é conhecido - postou em suas redes sociais, comunicado em que apresenta uma carta oficial, a qual comprova seu vínculo com a Igreja Católica Ortodoxa do Peru, assinada pelo seu respectivo Arcebispo Primaz Mor. Francisco Morán Vidal, o qual confirma haver uma missão da entidade no Brasil.
Segundo uma fonte entrevistada, Kelmon antes de ser Ortodoxo, teria sido seminarista de uma Congregação Religiosa pertencente à Igreja Católica Apostólica Romana, denominada de "Legionários de Cristo", tendo iniciado, portanto, seus estudos religiosos em Itapecerica da Serra-SP.
Não se sabe em que momento e por quais razões, o religioso rompeu com a organização.
Várias pessoas estão me perguntando sobre a igreja que faço parte, então, disponibilizo aqui, a Carta de esclarecimento da Igreja Católica Apostólica Ortodoxa do Peru. Deus abençoe a todos.🇧🇷🙏🏻 #vote14 #orgulhodesercristão pic.twitter.com/CS2HqYnhe9
— Padre Kelmon 🇧🇷14 (@PeKelmon) September 20, 2022
Privatizaram Deus!
Ora, para longe das extremidades políticas e das ideologias que estão em jogo, é nítido o instituto dominador que orienta a hierarquia dessas igrejas ditas "históricas". Talvez por isso estão sendo reduzidas de tal forma, que praticamente apenas uma pequena "porção de rebanho", ainda frequenta suas liturgias. A dura verdade por trás desse fenômeno é que essas igrejas, não respondem mais às necessidades espirituais do povo. Ou seja, se perderam em meio aos seus próprios legalismos e estão sendo responsáveis pelo recrudescimento do laicismo, que começa a ganhar força no país, como aconteceu no passado com a Europa.
Observando o emblemático caso do "falso" sacerdócio desse tal padre Kelmon, depreende-se que tudo o que está fora do domínio dessas organizações, é "falso", pois se autoproclamam arautos da mais legítima verdade da fé. Criaram uma espécie de "clube", onde só entram os eleitos. Privatizaram Deus e sua ação em favor dos homens e mulheres que nele creem. Só é legítima a ação de Deus que é realizada por intermédio dos membros do "clube". Deus parece só agir legitimamente através deles!
Omitem questões suscitadas pela própria bíblia (que dizem defender e anunciar), onde no livro do evangelista João, no capítulo 3, versículo 8, por exemplo, está escrito - "O vento sopra onde quer, você escuta o seu som, mas não sabe de onde vem, nem para onde vai; assim ocorre com todos os nascidos do Espírito.” Em outro trecho, afirma - "Então replicou João: “Mestre, vimos um homem expulsando demônios em teu nome e nos dispusemos a tentar impedi-lo, pois afinal, ele não caminha conosco. Jesus, entretanto, lhes advertiu: “Não o proibais! Pois quem não é contra vós outros, está a vosso favor” (Lucas 9, 49-50) . Ignoram, portanto, tais questões. Seriam os novos "fariseus" o século XXI?
Talvez por essas atitudes que, ainda no século XVI Lutero, combateu tanto o poderio político-religioso desse tipo de igreja. Exatamente por entender que a ação de Deus é livre e acontece de forma autônoma. O polêmico ex-monge agostiniano que queria ser advogado, mas acabou sendo padre, por ter feito uma promessa a Santa Bárbara, defendia o que chamou de "justificação pela fé" e foi o responsável pela eclosão do movimento que ficou conhecido como Reforma Protestante.
Em relação às questões envolvendo a liberdade religiosa no Brasil, a Constituição Federal, no artigo 5º, VI, estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.
A exegese desse dispositivo, nos leva a concluir que o ministério do "padre" não é falso, como dizem as más línguas, e que a tolerância e o respeito à diversidade é uma forma proeminente de se praticar a liberdade religiosa. Isso vale para todas as religiões.
É óbvio que as instituições têm o direito de se defender, até mesmo porque, essas questões envolvendo fé e política costumam ser muito sensíveis para os interesses particulares das igrejas envolvidas (possível razão pela qual fizeram questão de emitir nota). Mas, nem sempre o fazem apenas por questões de "zelo pastoral", como costumam justificar a atitude. Frequentemente, tais iniciativas, escamoteiam outras razões, já que não é possível esclarecer a população, apenas com uma nota oficial, a complexidade que é a história da ortodoxia, bem como a estrutura de governança dessas organizações.
Até mesmo as igrejas tradicionais de origem protestante, possuem essa inclinação de combate a tudo aquilo que não podem controlar. O caso do "padre", não expõem apenas uma estratégia política do PTB, mas também, o quanto de politicagem existe dentro das igrejas históricas.
Vale ressaltar que, em 2018 o Cabo Daciolo fora candidato pelo Patriotas e, em nenhum momento, se observou esse tipo de intervenção por parte de evangélicos e pentecostais.
A estratégia de Roberto Jefferson
Fiel apoiador do presidente Jair Bolsonaro, que concorre à reeleição pelo Partido Liberal, Bob Jeff, presidente do PTB, indicou o Padre Kelmon como seu substituto, haja vista estar impedido de disputar o pleito, por se encontrar em complicação com a justiça.
É nítido para nós analistas políticos, principalmente após o debate do SBT, que a candidatura do padre, não passa de uma estratégia do mandatário, para angariar alguns votos a mais da ala ultraconservadora para Jair. Tudo parece ter sido muito bem planejado, ainda que o padre tenha dito no debate que, sua candidatura é "fruto da providência divina".
Para o segundo turno das eleições a polarização tende a se acentuar em um cenário onde disputará Lula e Bolsonaro.
Embora as várias pesquisas divulgadas com a intenção de influenciar o eleitor indique vantagem para o candidato da esquerda, ainda é difícil prever o resultado do pleito.