O charlatanismo e o mito do herói (Opinião)
Que estamos vivendo dias estranhos, isso não é novidade para mais ninguém. Já passou o tempo em que as notícias sobre as desvirtudes humanas chocava a sociedade. Hoje com a banalização do mal, acabamos nos acostumando, mais por questão de adaptação do que por aceitação, a viver nesse mundo tão caótico.
Durante os anos da escola, nas aulas de filosofia, fiquei sabendo que os gregos construíam deuses com virtudes superheroicas para representar o desejo deles de serem perfeitos, como as divindades do Olimpo. É curioso o fato de que na construção simbólica desse universo, até no plano divino existia o alto e o baixo escalão, ou seja, havia desigualdade entre os eternais. Ao repassar os principais acontecimentos do passado percebi que também as grandes revoluções conhecidas na história não aconteceram com tanta coerência assim.
O que quero dizer com tudo isso? Que os anos se passaram e o ser humano não mudou. As pessoas gostam de fingir o que não são. A psicologia explica, por exemplo, que no fenômeno conhecido por projeção o indivíduo costuma "Carregar suas culpas sobre os outros". Em termos mais didáticos: Na projeção o indivíduo distorce continuamente a realidade em benefício próprio e dessa forma há quem arrisque viver se enganando e enganando os outros.
Ao analisar o caso emblemático envolvendo os crimes da deputada Flordelis (PSD-RJ), consigo extrair matéria suficiente que ratifica o já exposto. A própria polícia se referiu à família da deputada como "organização criminosa" que utilizava o evangelho e a política como cortina para encobrir os inúmeros crimes e dissenções diabólicas praticadas pela organização. Eles podem até se considerarem evangélicos, mas não são. É preciso separar o joio do trigo (foi o próprio Jesus que ensinou isso).
Nos últimos 15 anos no Brasil a mistura entre religião e política tem sido, uma fórmula imbatível para legitimar o poder absoluto e o enriquecimento de líderes, mal intencionados, pertencentes às mais diversas denominações religiosas. Entretanto, convém fazer o seguinte questionamento: Seria essa prática um problema da religião e da política? Teríamos portanto que acabar com as duas instituições para jogar uma "pá de cal" sobre essas duas vilães?
Uma pessoa atenta não teria dificuldades para identificar certa regularidade na forma como se manifesta o charlatanismo em nossa sociedade, já que toda a estratégia do charlatão gira em torno do discurso e da ideia que ele coloca na cabeça das pessoas. Esse comportamento se materializa mediante um discurso onde o criminoso exalta suas qualidades ao ponto de tornar o seu comportamento livre de qualquer suspeita.
O charlatão funciona assim: Ele cria um personagem e encarna o figurino com a mesma fidelidade com que um ator encena uma peça. E dessa maneira ele vai agindo, conquistando lentamente a confiança das pessoas. Em outras palavras: o charlatão se transforma numa ideia. Por essa razão é que não é difícil encontrarmos, inclusive, "empresas" fantasiadas de religião.
O fato de vivermos uma linha muito tênue entre a civilização e a barbárie, não deve ser uma justificativa para jogarmos "a água suja da banheira com o bebê dentro". Como pesquisador, tenho me dedicado a estudar o aspecto comportamental da sociedade contemporânea, e afirmo não conseguir indícios suficientes que me convença de que a melhor solução para os nossos dilemas ideológicos seja eliminar a religião e a política como se fossem duas coisas execráveis da qual a sociedade precisa se libertar.
Em verdade, a grande crise do século XXI é a ignorância. As pessoas insistem em criar para si deuses e heróis, por essa razão são frequentemente enganadas. O arquétipo entre Deus e o diabo, o bem e o mal, a bruxa e a princesa, ainda é muito forte na consciência coletiva, assim como também a transferência das próprias responsabilidades (Deus resolve tudo, é como se fosse uma panacéia!). O ser humano é realmente um bicho complicado.
Outra questão que facilita a ação dos heróis charlatões é o baixo nível de alfabetização das pessoas (o que é um problema de política pública, inclusive). O conhecimento quando não sistematizado tende a produzir distorções que prejudicam a correta compreensão da realidade. Só o conhecimento é capaz de auxiliar o indivíduo a separar o certo do errado e, por conseguinte, se desvencilhar do discurso autoritário e hegemônico, proferido por charlatões de plantão. Caso contrário, existe o risco do indivíduo ficar sempre cobrando dos outros aquilo que ele não é capaz de fazer sem que alguém mande, vivendo em um mundo paralelo, utópico, pueril [...] Isso só produz sofrimento, violência e adoecimento social.