Festa do Divino de Alcântara-MA: os 7 elos que unem a terra e o céu, o presente e a eternidade.
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Imagem: Celebração da Festa do Divino/ G1.com |
"Navegar é preciso!, Viver não é preciso" (Fernando Pessoa)
Aviso aos navegantes:
O texto a seguir consiste em uma análise sobre a Festa do Divino Espírito Santo de Alcântara-Maranhão. O artigo é fruto das observações realizadas pelo jornalista Antonio Silva (correspondente da Folha 390), ao acompanhar os eventos comemorativos naquela cidade em junho de 2025.
Trata-se de uma escrita voltada para amantes da leitura, já que em tempos de "fast jornalismo", a predileção por matérias rasas, sem muita preocupação em explicar o contexto, ganha cada dia mais adeptos na era das redes sociais.
Se você é uma pessoa diferenciada, amante do bom e tradicional jornalismo de fato, acompanhe com dedicação cada linha a seguir. Boa leitura!
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A festa do Divino Espírito Santo é a principal manifestação de caráter religioso que existe no município de Alcântara, cidade maranhense da região metropolitana, a qual dista 22 km (em linha reta) de São Luís-MA.
Em um passado remoto, o território abrigava uma grande aldeia dos índios Tupinambás, e chegou a ter como topônimo o nome de Vila de Tapuitapera (que significa "terra dos Tapuios").
Em 1648, a vila passou a se chamar Alcântara, uma palavra derivada do árabe que significa "ponte" ou "arco" (al-qantara). Provavelmente os portugueses atribuíram esse nome ao lugar, por ser comum na península Ibérica (território que já foi dominado por árabes por volta do século VIII d.C).
Nos ensina a tradição cristã que sete são os dons do Espírito Santo: a sabedoria, a inteligência, o conselho, a fortaleza, a ciência, a piedade e o temor de Deus.
Penso que também são sete os elos que unem a Festa do Divino de Alcântara às dimensões metafísicas envolvendo o passado, o presente e a eternidade. Seriam eles: 1 - a inter-relação com o sagrado; 2 - A preparação da festa ou, simplesmente "esmolação"; 3 - o levantamento do mastro; 4 - os 12 dias de festa; 5 - as caixeiras do Divino; 6 - a comensalidade e 7 - o sincretismo religioso.
1) A relação com o sagrado manifesta-se por meio de símbolos e comportamentos, cujo sentido é atribuído e legitimado por uma comunidade, que "valida" o significado e molda comportamentos.
A antropologia nos ensina que "símbolo" é tudo aquilo que possui um significado e une uma realidade presente a outra metafísica. É aqui que o temporal e o eterno se interpolam no "Divino" de Alcântara.
Tudo isso se manifesta exteriormente por meio das vestimentas solenes (que remontam aos trajes imperiais, da corte portuguesa), das danças e gestos que incorporam o "Divino" em cada detalhe.
Por exemplo: não se pode adentrar à sala onde se encontra montado o altar do "Divino" com roupas inapropriadas. Porque, na concepção das pessoas do lugar, tudo aquilo é muito sagrado! A sala adquire as características próprias de um templo religioso e os transgressores, são passíveis de "detenção", pela Guarda Imperial.
Lembro que, em uma das minhas primeiras visitas, não pude ingressar na Casa do Divino de Alcântara por esse motivo.
Ou seja, são referenciais que dialogam não somente com os relatos da tradição cristã do episódio de pentecostes, mas também com a dimensão moral (certo vs. errado) de uma comunidade!
A religião seria, pois, uma apropriação do sagrado de maneira a que o mesmo venha a dar sentido à vida do devoto; utilizam-se para tal, experiências, comportamentos e valores coletivos em termos de manifestações de alegria (a festa) e de seriedade (culto), para expressar fé e adoração.
2) No domingo de Pentecostes, último dia da Festa, ao término da Missa, o vigário local anuncia os nome dos festeiros escolhidos para o próximo ano.
A festa é preparada ao
longo dos 12 meses subsequentes ao da festa cessante. Em um claro aceno a um ciclo iniciado aqui no mundo terreno, mas que só se encerrará na
eternidade (céu).
As pessoas escolhidas, portanto, são merecedoras de grande prestígio na sociedade alcantarense. Mas, é importante mencionar que, os custos da festa recai majoritariamente sobre os "eleitos", embora contem com o apoio dos recursos captados através das esmolações feitas e do poder público.
Um fato digno de nota é que são selecionadas pessoas adultas, por uma pessoa da comunidade a qual cumpre o papel de "guardião" da tradição do "Divino" de Alcântara. Entretanto, adolescentes e crianças são nomeadas para representarem os cargos do Império fictício, que é criado durante os 12 dias da festa.
Alternadamente, um ano é de imperatriz e outro de imperador (primeiro escalão); depois vem os mordomos régios (segundo escalão, sucessores diretos do Imperador ou Imperatriz). Por fim, os mordomos baixos (terceiro escalão).
O "Divino" está presente ao longo de todos os meses do ano na vida de cada membro da comunidade de Alcântara. O que reforça o imaginário coletivo e reafirma a tradição, proporcionando que a mesma seja passada de geração em geração.
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Foto: Levantamento do Mastro/ G1.com |
3) O levantamento do mastro marca o início da festa, geralmente na quarta-feira que antecede a festa da Ascensão do Senhor Jesus.
A cerimônia é eminentemente masculina, pois os homens da cidade precisam envidar força considerável para conduzir as "toras" de madeira (de aproximadamente 10 metros de comprimento) aos locais específicos. Trata-se de um evento celebrativo acompanhado com toques de caixa e cantos, por toda a comunidade de Alcântara.
Os devotos passam a tocar no mastro como se este fosse uma espécie de objeto santo, dotado de poderes milagrosos.
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Agência de Notícias das Favelas - ANF |
4) Os 12 dias de festa são marcados por uma intensa movimentação no sítio urbano. A cidade se reveste de cores vibrantes. Foguetes e sons de bandas de fanfarra, se fazem ouvir aos quatro cantos, atraindo a atenção dos vários turistas que acorrem à cidade para viverem essa experiência com o "Divino" de Alcântara, ora motivados por devoção religiosa ora por interesse no depósito cultural conservado pela mesma.
Os rituais, modos de vida e a religião, na visão do antropólogo Clifford Geertz é um “sistema de símbolos que estabelece sentimentos e motivações poderosos, penetrantes, duradouros, pela formulação de concepções de uma ordem geral de existência”, podendo variar em termos de ritual e modos de adoração, assim como nas particularidades do festejar, em cada sociedade.
No caso da Festa do Divino em Alcântara, sentimentos, crenças e representações se imiscuem na pluralidade de pessoas que assistem às peregrinações noturnas nas "casas de festa" ao longo de toda a noite.
O "Divino"
conecta os participantes da festa do hoje aos espíritos ancestrais
daqueles e daquelas que foram transmutados para o plano espiritual e aguardam por estes que ainda estão a passar pelo rito natural de nascimento, crescimento e morte terrena.
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Foto: Caixeiras do Divino/Portal da Prefeitura de Rio das Ostras |
5) As caixeiras do "Divino", são importantes protagonistas nas noites de festa, e exercem uma espécie de "sacerdócio feminino" no sacro ofício da festa.
As Caixeiras cantam e tocam em todas as etapas do "Divino". Seus cânticos são parte fundamental do ritual e permitem transmutar e atribuir poder à encenação realizada pelo Império, representado pelas crianças, dotando-o de efeitos místicos.
A eficácia é garantida por conta de sua própria encenação em conjunto com as melodias que as Caixeiras entoam e seus batuques, gerando uma espécie de transe.
Nenhuma ação é realizada sem a performance ritual das Caixeiras, é como se elas detivessem a permissão do Divino para a realização do ritual que dá início à transmutação de tempo profano em tempo sagrado.
Os sujeitos ‘caixeiras’, presentes na Festa, são os principais mantenedores do legado cultural dessa manifestação no Estado, o que os transforma em atrativo turístico.
As caixeiras são mulheres que entoam cânticos em louvor ao Divino, prática local secular, que atualmente encontra-se sob ameaça de extinção, por falta de sucessoras, assim como pelo descaso da comunidade em relação a elas e pela falta de condições do grupo, em se manter coeso, para reprodução da prática do toque de caixas.
As caixeiras mais antigas de Alcântara, ainda são descendentes de pessoas escravizadas. Entretanto, nessa última festa, observei jovens meninas e mulheres adultas sendo iniciadas no ofício.
6) A comensalidade da festa é uma característica muito peculiar. O "Divino" é marcado por uma abundância de comida!
O alimento está relacionado ao simbolismo do integrar. Não por menos, a mesa comum, por muito tempo foi tida como espaço para partilha e fortalecimento dos vínculos afetivos e interpessoais. Costume esse, que vem sendo perdido com a vida cada dia mais frenética, devido às mudanças sociais.
As comemorações ao Divino Espírito Santo em Alcântara resgatam esse aspecto da tradição em partilhar o alimento como gesto de fraternidade.
Em mais de um cômodo das casas de festa, observei que mesas são dispostas, com belos enfeites. É ali onde as pessoas se aproximam e a comida (chocolate quente, doce de espécie, licores, dentre outros quitutes) são servidos generosamente a todos os presentes.
O preparo exige trabalho em grupo, para as quais são chamados os vizinhos, para tarefas precisas, exigindo formas ritualizadas de consolidar a coesão do grupo, consubstanciadas na partilha alimentar e na comensalidade e como forma privilegiada de pagamento dos favores aos vizinhos.
Nesse ano de 2025, os festeiros relataram dificuldades na obtenção de matéria prima para a produção do principal doce, símbolo da comensalidade da festa: o doce de Espécie, produzido com coco.
Segundo relatos populares, o doce de espécie foi uma receita elaborada para ser a sobremesa do Imperador D. Pedro II, quando viesse a Alcântara. Porém, a tão aguardada visita nunca aconteceu. A receita original, previa a incorporação de frutas como pêssego. Porém, como não havia essa fruta na região, os escravos responsáveis pela produção da iguaria mudaram o ingrediente para o que havia em abundância: o coco.
A guloseima acabou sendo atrelada à festa do Divino, já que ambas as tradições foram trazidas à região pelos açorianos da Ilha de São Jorge, que vivia sob domínio português.
7) Na bíblia, o "Divino" se manifesta através de sete dons. O número 7 é bastante simbólico no livro sagrado e representa a perfeição de todas as coisas.
O fundamento teológico da "Festa do Divino", tem sua centralidade na experiência dos Apóstolos após a morte de Jesus, o envio do "Divino" representaria a outorga da grande herança de Cristo para a sua igreja, a qual contribuiria para condução do movimento cristão e propagação da fé ("Eis que estarei convosco até o fim dos tempos" - Mateus 28,20).
A festa de pentecostes, portanto, é a celebração solene do cumprimento dessa promessa do Filho de Deus, 50 dias após a páscoa, mediante a descida definitiva do Espírito Santo sobre os Apóstolos (que simbolizam a igreja), narrada por São Lucas, no livro dos Atos do Apóstolos.
Entretanto, a celebração do "Divino" de Alcântara assume características sincretistas, já que a festa não é predominantemente "católica romana". A igreja acolhe a manifestação, mas a mesma não pertence a ela, mas sim ao povo.
O "Divino" possui forte ligação com os terreiros e entidades espirituais cultuadas no "Tambor de Mina", que elas chamam de encantados. Seria esta a dimensão mística da Festa.
Ou seja, o dever espiritual de algumas Caixeiras para com o Divino já fora vivenciado antes mesmo de iniciado o ofício como Caixeira. Isso se deve aos laços que estas mantêm com o lado místico da Festa, que envolve a encantaria.
Em paralelo à religiosidade que envolve a celebração do "Divino", festas "profanas" regadas a muita bebida alcoólica acontecem em paralelo. O termo "profano" aqui é empregado em referência a tudo aquilo que é o oposto de sagrado.
Sendo a cultura dinâmica, ao longo do tempo os grupos sociais vão modificando os elementos considerados originais de um ritual ou dança, festa ou celebração religiosa, reelaborando muitas vezes os seus significados, ou agregando “inovações” às tradições populares que se modernizam como estratégia de sobrevivência em novos contextos sociais.
A Festa do Divino Espírito Santo em Alcântara não é apenas uma celebração religiosa; é um fenômeno cultural complexo que tece, em seus rituais, a trama entre o humano e o divino, o histórico e o eterno.
Através dos sete elos explorados — a inter-relação com o sagrado, a esmolação, o levantamento do mastro, os 12 dias de festa, as caixeiras, a comensalidade e o sincretismo —, percebemos como essa manifestação ultrapassa o âmbito do festejo para se tornar um lugar de memória, no sentido proposto por Pierre Nora. Alcântara, com seu passado indígena, colonial e afrodescendente, encontra na Festa do Divino um palco onde identidades se reconciliam e resistem.
O sagrado, aqui, não é abstração, mas corpo: está no suor dos homens que erguem o mastro, nas mãos das caixeiras que transformam batidas de caixa em prece, no doce de espécie que carrega em sua receita frustrações históricas e adaptações criativas. A festa é, paradoxalmente, permanência e movimento. Preserva rituais seculares, como a guarda imperial e os cânticos em louvor ao Espírito Santo, mas também se reinventa, absorvendo novos atores (como as jovens caixeiras) e enfrentando desafios contemporâneos, da escassez de ingredientes tradicionais ao risco de desaparecimento de saberes.
O sincretismo, talvez o elo mais revelador, mostra que o "Divino" de Alcântara não cabe em rótulos. É católico, mas não só; é afro-brasileiro, mas não apenas. É uma teologia popular, onde os encantados do Tambor de Mina dialogam com os dons do Espírito Santo, e onde a bebida profana não anula a devoção, mas a complementa na dialética do humano. Como escreveu o antropólogo Claude Lévi-Strauss, "o sagrado é um fragmento de desordem que faz parte de uma ordem".
Por fim, a Festa do Divino é um ato de resistência. Em um mundo acelerado, ela insiste no tempo lento da preparação anual, na comensalidade como antídoto ao individualismo, e na transmissão oral que desafia a erosão do tempo. Se os sete dons do Espírito Santo são caminhos para a perfeição, os sete elos da festa alcantarense são vetores de um patrimônio imaterial que ancora uma comunidade no céu, sem deixar de pisar na terra. Que essa ponte — essa al-qantara — siga de pé, unindo passado, presente e eternidade.
* Antonio Victor
é jornalista,
sociólogo
e licenciado em Geografia.
Possui Especialização em Ciências da Religião.
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Referências:
A COMENSALIDADE NA FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO NOS ESTADOS DO
MARANHÃO E RIO GRANDE DO SUL COMO VEÍCULO DE SOCIABILIDADE. Disponível
em: https://periodicos.uesc.br/index.php/cultur/article/view/2960
Caixeiras do Divino: performance feminina e sua inter-relação com o sagrado. Disponível em: https://revistas.unama.br/index.php/asasdapalavra/article/view/1379